terça-feira, 13 de setembro de 2011

ANTONIN ARTAUD: CARTÓGRAFO DO ABISMO


Alexsandro Galeno A . Dantas*

“(...) Não se pode negar que se trata de uma fascinante ciência. Farto estou de haver visto homens  cultos, literatos, poetas, políticos que procuraram e acharam nessa ciência o seu mais elevado conforto e a sua última finalidade, apenas tendo conseguido fazer carreira mediante emprego de tais dons.”
O Idiota. Dostoiévski.

Um imenso abismo desejante toma conta da geografia interior de Artaud. “Assim como o mundo tem uma geografia, também o homem interior tem sua geografia e esta é uma coisa material.”[1]
Uma geografia cênica. Um espaço onde há conexões de fluxos e delírios comunicativos, rejuntando arte, vida, poesia e realidade. É neste sentido que Artaud se referiu ao mundo como “um abismo da alma”.
Para Gilles Deleuze e Félix Guattari[2], os indivíduos ou grupos são atravessados por verdadeiras linhas, fusos e meridianos distintos. Nossa existência é uma espécie de geografia. Somos corpos cartográficos. Assim como os mapas geográficos delimitam e registram territórios políticos, econômicos e culturais, os indivíduos também são registrados e cruzados por linhas. Algumas dessas linhas são postas do exterior para eles e não se cruzam, ao contrário, separam-se e demarcam os seus próprios territórios. Outras são produtos do acaso, mas há outras que devemos inventá-las, traçá-las, efetivamente, na vida. Devemos inventar nossas próprias linhas de fuga. Mesmo que para alguns indivíduos ou grupos nunca seja possível construí-las. Outros já as perderam. As linhas de fuga são “uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma.”[3]
    Essas linhas significam possibilidades de territorialidades, desterritirialidades e reterritorialidades. Elas estão sujeitas ao perigo, à errância e ao abismo. Não significam que se cruzem ou se componham facilmente. Certas vezes, sequer, entrecruzam-se, dirá se tornarem compatíveis. Certamente elas exigirão, como queria Antonin Artaud, uma geografia experimentada, onde simultaneamente, tenhamos, como sentiu seu contemporâneo, companheiro de delírios e internações – Gérard de Nerval - que buscar respostas através dos “desejos de claridades” para as “desesperadas reivindicações da alma” e para as nossas “insistentes trevas”.
         Esses desejos de claridades ou os desejos de uma “tentação cênica”, talvez represente a busca, para Artaud, de traçar suas próprias linhas de fuga. Desordenadas cartografias desenhadas por desesperadas e desejantes linhas de errâncias inscritas, segundo Deleuze e Guattari, em um CsO - Corpo sem Órgãos, onde tudo se traça e foge ao mesmo tempo.
É desta forma, que Antonin Artaud nos incita a excursionarmos por seus territórios. Não poderíamos partir adiante sem atentar para sua tamanha advertência àqueles que pretendem conhecê-lo ou perguntarem: quem é Antonin Artaud? Ele responderá:
Quem sou?
De onde venho?
Eu sou o Antonin Artaud
E basta dizê-lo,
Como sei dizê-lo,
Imediatamente

Vereis o meu corpo atuar

Voar em estilhaços
E em dois mil aspectos notórios
Refazer
Um novo corpo
Onde nunca mais

Podereis

Esquecer-me.[4]
    A idéia de um corpo em estilhaços que se multiplica e se refaz num novo corpo, configura-se ao nosso ver, na idéia imagética que Artaud se inscreve e se representa como linhas de fuga, onde há momentos possíveis de traçá-las e em outros, tornam-se fugidias. Ousamos afirmar que a imagem de Antonin Artaud configura uma “cartografia imaginal” na medida em que se apresenta como desconstrução daquilo que parece ordenado, cortado, separado ou esquadrinhado. Um cartógrafo do abismo e do desespero que declara guerra contra a tentativa de transformá-lo em registros esquadrinhados e em puro organismo.
Artaud é o próprio corpo sem órgãos, na acepção de Deleuze e Guattari. Para tais autores, o CsO “é não desejo, mas também desejo. Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite. Diz-se: que é isto - 0 CsO - mas já se está sobre ele - arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos.”[5] 
Quando Deleuze e Guattari tematizam a idéia de CsO, fazem com a intenção de abrir fogo aos ditames da psicanálise. Para eles não é possível conformar-se com a mesmice da tríade Pai-Mãe-Filho, pois este mimetismo triangular conduz ao “incurável familiarismo”, esquarteja a produção desejante e registrará a todos num harmonioso organismo. Poderíamos afirmar que esses registros arbitrários, especialmente feitos pela psicanálise e pela psiquiatria, constituem-se em verdadeiros corpos com órgãos. Explico. Esquadrinham o corpo, determinando aos órgãos suas funções, territórios e higienizações. É contrário a esses registros mutiladores e disciplinares que se inscrevem as linhas de fuga da cartografia do CsO de Antonin Artaud. A produção desejante artaudiana configurará o Corpo sem Órgãos, na medida em que, para Deleuze e Guattari, ele signifique o campo de imanência do desejo ou o plano de consistência do desejo, ou seja, será nesse campo ou plano onde o desejo se definirá como processo de produção, independente de instâncias exteriores que indiquem alguma falta a ser suprida, como advoga a psicanálise.
No livro O anti-édipo[6] , Deleuze e Guattari, são crus e impiedosos com o “Papá-Mamã”. Apontam suas armas, tentando desconstruir as muralhas dos “impérios” no Complexo de Édipo. Para eles, a psicanálise ao tentar explicar os indivíduos, lança olhares de uma luneta codificadora, separadora e mutiladora para registrá-los. Trata os delírios, as imagens disformes como distúrbios mentais e recalques primordiais.
O CsO é o próprio anti-édipo, assim como Artaud o incorpora ao declarar guerra aos órgãos:
(...)
se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.[7]

Artaud configuraria, portanto, uma “máquina de guerra” fundamental de combate aos registros castradores da violência cognitiva da razão. Denominamos de violência cognitiva, sobretudo, àquela advinda do pensamento cartesiano que não pára de ordenar aos seus inspetores para que vigiem com suas lunetas os desregramentos, as linhas de fuga e as transgressões. É um tipo de violência, onde cada vez mais, especializam-se os conhecimentos, contribuindo como nos diz Artaud, para a “trituração dos corpos”. São verdadeiros estiletes cognitivos, fatiando os saberes e impossibilitando o diálogo com uma razão mais aberta e não fragmentada. Neste aspecto, doença, saúde e loucura, mercantilizam-se, fazendo parte da própria esfera de circulação de capitais. O corpo se esquarteja ou se estilhaça em infinitos pedaços para alimentar o desejo sádico e instrumental das especialidades. A loucura é tratada como intervenção clínica e como confinamento compulsório do tratamento psiquiátrico.
Artaud vivenciou tais mutilações. Entende-se assim os motivos de sua fúria com essas práticas:
Passei nove anos num asilo de alienados.
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me revoltar.
(...)
Se não tivesse havido médicos
nunca teria havidos doentes,
nem esqueletos de mortos
doentes para escortaçar e esfolar,
porque foi com médicos e não com doentes que a sociedade começou.[8]
É desta maneira que concebemos Artaud como uma cartografia imaginal e como este CsO capaz de se insurgir contra as violências cognitivas do saber racionalizante. Artaud, assim como o CsO exibe uma  ética da transgressão e vivencia ao limite suas zonas de intensidades. Ou, ainda, advogam Deleuze e Guattari, Artaud seria um rizoma[9] que desloca sentidos e inaugura  aquilo que Michel Foucault denominou em As palavras e as coisas de um pensamento como um ato-perigoso: “Antes mesmo de prescrever, de esforçar um futuro, de dizer o que é preciso fazer, antes mesmo de exortar ou somente alertar, o pensamento, ao nível de sua existência, desde sua forma mais matinal, é, em si mesmo, uma ação- um ato perigoso. Sade, Nietzsche, Artaud e Bataille o souberam, por todos aqueles que o quiseram ignorar; mas é certo também que Hegel, Marx e Freud o sabiam”[10].
Como andarilho pelo mundo dos ‘gênios híbridos’(Deleuze), Artaud, cartografa regiões formadas por imensos continentes imaginais e habitadas pelas famílias dos que pensam e experimentam perigosamente a vida e as idéias. Conforme, Deleuze e Guattari destacam em ‘O que é a filosofia?[11], Artaud conjuntamente com Hölderlin, Rimbaud, Marllarmé, Kafka, Fernando Pessoa e outros se inscreve no imaginário dos leitores  como ‘personagem conceitual’ ou um autor  malabarista que produz ‘obras com pés desequilibrados’. Ele ao se movientar diante do mundo como os ‘acrobatas esquartejados num malabarismo perpétuo’[12], exercita aquilo que Nietzsche denominou para filosofia como modos de existência ou possibilidades de vida. Um ser que cunhou definitivamente sua revolta contra as  noções cartesianas que separam e fragmentam cultura e vida: “protesto contra a idéia separada que se faz da cultura, como se de um lado estivesse a cultura e, do outro, a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio apurado de compreender e de exercer a vida”.[13]


* Doutorando em Ciências Sociais/PUC-SP. 
[1] ARTAUD, Antonin. Surrealismo e revolução. In: WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Coleção Rebeldes & Malditos - v. 5. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 93.

[2] Em algumas das obras de Deleuze e Guattari, são recorrentes referências às noções sugeridas por  Antonin  Artaud. Poderemos destacar  as idéias de  CsO ( Corpo sem órgãos), Glossolalias e a crítica artaudiana a linguagem de ‘superfície’ na poética de Lewis Caroll como destaques fundamentais na obra desses autores.

[3] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. (tradução de Aurélio Guerra Neto et alii). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 3. Rio de Janeiro: ed.34, 1996. Pp. 75-6.

[4] ARTAUD, Antonin. (tradução de Aníbal Fernandes). Eu, Antonin Artaud. op. cit. p.111.

[5] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Op.cit.9-10.
[6] DELEUZE. Gilles & Guattari, Félix. O Anti- édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Portugal: Assírio & Alvim, 1966.
[7] ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: WILLER, Cláudio. op. cit. p. 161.

[8] ARTAUD, Antonin. (tradução de Aníbal Fernandes). Eu, Antonin Artaud. Op.cit. P. 76 e 79.

[9] Rizoma é um dos conceitos utilizados por DELEUZE e GUATTARI em Mil Platôs (v. I, 1995:32-33). É um termo originariamente da botânica, que o define como um caule subterrâneo responsável pela produção de ramos aéreos com características de raízes. Os autores se apropriam, resignificando-lhe como uma rede conectiva de vários sentidos.

[10] FOUCAULT. Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p453.
[11] DELEUZE , Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a  filosofia. São Paulo: Editora 34, 1997.
[12] DELEUZE , Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a  filosofia. Op.cit. p. 90.
[13] ARTAUD, Antonin. O teatro e o seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1985. P. 18.

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