terça-feira, 13 de setembro de 2011

ANTONIN ARTAUD E O TEATRO DA CRUELDADE

Camille DUMOULIÉ*


* Université de Paris X-Nanterre. Centre de Recherche en littérature et poétiques comparées –
Département de Lettres Modernes. Nanterre – Paris – França. 92001 – camille.dumoulie@free.fr.
Tradução para o português de Sylvie Lins.


RESUMO: Este artigo analisa a evolução da noção de crueldade através do conjunto 
da obra de Antonin Artaud (1895-1948). A visão metafísica de uma vida dominada
pela crueldade cósmica, na época de O teatro e seu duplo (1938), inverte-se com
a experiência da loucura. O teatro torna-se então uma arma de guerra contra as
forças alienantes do corpo e do espírito. A idéia de uma crueldade libertadora
que se exerce contra o sistema da representação que domina nossa sociedade do
espetáculo, tal é a essência do legado de Artaud aos dramaturgos e aos artistas
contemporâneos.


PALAVRAS-CHAVE: Antonin Artaud. Teatro da Crueldade. O teatro e seu duplo.


Em Le Théatre et son double, Artaud (1971) afirma que “a vida é crueldade”,
mas também, que “não existe crueldade sem consciência.” A crueldade da vida
pertence então ao ser consciente, ao homem. Um animal, mesmo carnívoro e
violento, não é em nada cruel. E o instinto do tigre não é crueldade. Apenas
o homem vive na e pela crueldade. É que o homem não é imediatamente na
vida. Existir significa se encontrar fora de si, fora de seu ser o mais íntimo e
da evidência primeira da vida. A consciência surge dessa dilaceração, desta
separação do homem com o fl uxo contínuo da vida. E o espírito é a energia
viva desta consciência, o fogo que brota dessa falha vulcânica de onde emerge
a existência humana. Assim Artaud (1976a) pode afi rmar: “Existe um espírito
na carne”, ou seja, e a expressão é dele também: “existe uma faca que eu não
esqueço.” Mas através dessa separação íntima da carne humana, o corpo pensa.
Esta consciência, sobretudo quando ele fala dela em Le Théâtre et son double,
não é uma realidade psicológica, mas, antes, uma instância metafísica. Acontece a
mesma coisa com a crueldade. Todos os textos reunidos nesse livro desenvolvem
uma verdadeira metafísica da crueldade, dominada pela fi gura gnóstica de um
demiurgo cruel. Esse deus encarna a separação. Não é o fogo virtual do espírito,
que Artaud (1971) chama também “Satã o fogo”, mas sua solidifi cação sob o
aspecto de uma substância que quer ser eterna. Este deus ruim, sorte de má
consciência metafísica, mantém a criação num estado de divisão que provoca o
sofrimento e o tormento dos seres. Contra esse deus, mesmo o fogo de Satã é
uma salvação e uma força de liberdade.
Determinado por essa visão gnóstica, o teatro da crueldade, que Artaud
defi ne como ritual e mágico, tem uma dimensão apocalíptica. Ele leva a divisão até
suas últimas conseqüências e deve redobrar o confl ito das forças e da crueldade
de viver a fi m de acabar com a crueldade. Artaud, nesses primeiros textos, pensa
o teatro como um exorcismo metafísico. A fi nalidade do teatro da crueldade não
é o prazer de assistir ao espetáculo cruel, mas consiste em reencontrar a primeira
unidade do mundo que é tão-somente o Nada originário.
Antes de chegar lá, entretanto, é preciso convocar no palco esta potência
metafísica, essa “ruindade essencial” de Yavé que mantém o mundo na divisão.
O diretor é como um novo demiurgo, como o Cristo do Apocalipse, com o qual
Artaud se identifi cou durante o delírio que o conduziu à Irlanda e ao hospital
psiquiátrico. Ele vai levar o mundo até seu último termo e destruir a ordem
injusta da criação. Como um exorcista, ele tem que convocar em cena as forças
metafísicas e cósmicas precipitando-as até “[...] o instante supremo no qual
tudo o que foi formado estiver pronto para retornar ao caos.” (ARTAUD, 1971,
p.100).
Mas, atenção! O teatro não é o lugar do caos. Ele o anuncia e o prepara.
E, se necessário, ele dá aos espectadores o desejo anárquico de destruição de
toda ordem social. Esse teatro, contudo, é extremamente rigoroso, e nisso, ele é
cruel. A crueldade não é pura violência. Artaud (1971, p.97) afi rma ao contrário,
no Teatro e seu Duplo: “Do ponto de vista do espírito, crueldade signifi ca rigor,
aplicação e decisão implacável, determinação irreversível, absoluta.” Eis a razão
de sua fascinação pelos mitos e religiões antigas. Ele escreve:
É assim que todos os grandes Mitos são negros e é assim que não se pode imaginar
fora de uma atmosfera de carnifi cina, de tortura, de sangue vertido, todas as magnífi cas
Fábulas, que narram para as multidões a primeira divisão sexual e a primeira carnifi cina
de espécies que surgem na criação. O teatro, como a peste, é feito à imagem dessa
carnifi cina, dessa essencial separação. Desenreda confl itos, libera forças, desencadeia
possibilidades, e se essas forças são negras, a culpa não é da peste ou do teatro, mas da
vida. (ARTAUD, 1971, p.28).


Os mitos oferecem imagens de divisão e de esforço de reunião tão cruéis
como os princípios que entram em guerra. Cada um quer obrigar o outro a se
integrar nele. Essa guerra cósmica está dominada pela divisão e pela vontade
de reunifi cação do masculino e do feminino que Artaud reencontra nos mitos
gregos, sírios ou mexicanos. Os mitos, como imagens, já são uma teatralização
da crueldade. Assim, no México, para onde ele foi viver uma cultura da crueldade
inscrita no corpo e na terra dos Índios Tarahumaras, Artaud afi rmava que os
deuses estão no mundo como num teatro. Ele acrescentava, imediatamente, que
estes deuses em guerra que “vivem num espaço vibrante de imagens”, que vivem
na divisão e no duplo, “povoam o espaço para cobrir o vazio”. Eles escondem,
então, o fato de que seu destino metafísico é “recair depois vertiginosamente no
vazio” (ARTAUD, 1971-1980, p.167).
Limitar-se às imagens dos mitos e das religiões, aos sacrifícios que mantêm
uma ordem religiosa do mundo, interessar-se unicamente pelo aspecto espetacular
do teatro, tudo isso representa o mesmo erro. É parar no meio do caminho, é ser
complacente com a crueldade, seja por sadismo, seja por masoquismo. Mas, um
olhar rigoroso, sobre os mitos, os deuses ou o teatro, obriga a reconhecer que
o espírito deve acabar com os mitos, os deuses e o teatro. A vida não se limita a
essas formas “tipifi cadas”, e é nisso que ela tem seu rigor cruel. Se a imagem e o
espetáculo cruéis são úteis, eles não representam o essencial, mas um meio para
que o espectador atinja uma consciência pura da crueldade da vida.
Como defi nir esta crueldade? Ela nasce do dilaceramento entre a força vital
e as formas do vivo. Entre a pulsão que nos atravessa e o corpo que temos que
construir. O homem existe entre duas coações que o matam e o fazem viver ao
mesmo tempo. De um lado, é a violência da vida que jorra como um jato de
sangue, como a peste à qual Artaud compara a energia do teatro (cabe lembrar
aqui a proximidade etimológica em grego de bios, a vida, e bia, a violência). De um
outro lado, é a máquina coercitiva, porém, formadora dos princípios masculino/
feminino, das diferenças, eu/ o outro, dos signos que se inscrevem no corpo, ou
das categorias que estruturam o espírito e a sensibilidade.
Para as plantas e os animais, parece que existe um acordo natural entre a
força da seiva e a forma da fl or, entre a potência da carne e o corpo do cachorro
ou do pássaro. Essa ligação representa sempre um problema para o homem.
Nossa vida nunca é um dado imediato. Ela tem sempre que ser trabalhada. A
natureza humana é o fruto desse trabalho ininterrupto que se chama cultura,
mas que é também a natureza do homem, e aquilo representa um tripalium. O
tripalium, na antiguidade latina, era um instrumento de tortura sustentado por três
estacas envolvendo um membro. Elas eram marteladas até esmagar o membro.
A palavra trabalho tem essa origem, e cada um de nós sabe que o trabalho é
mesmo uma tortura. Em termos lacanianos, essas três estacas do ser humano
são o simbólico (ou a ordem da linguagem e da cultura), o imaginário (desde as
capturas visuais até os roteiros fantasmáticos) e o real (isto é, essa potência bruta
e imediata da vida que as duas outras vão formatar).
A vida é para o homem crueldade, pois ela é uma modelagem infi nita da
força do vivo. Mas Artaud, independentemente de sua imagem gnóstica, diz
mais ainda: o homem tem consciência que toda vida no seu conjunto é fruto de
uma crueldade infi nita. Ora, mesmo a suposta natureza do animal ou da planta,
evocada no começo, é fruto de um jogo de interações de afetos, como afi rmava
Spinoza. E Artaud, para defi nir a crueldade, retoma exatamente os mesmos
termos que Spinoza, a saber: “esforço”, “apetite”, “desejo”. Artaud sentia-se,
todavia, mais próximo do grande pensador da crueldade que foi Nietzsche,
que afi rmava que mesmo o instinto tem que devir e que aquilo que chamamos
“instinto” no animal, como se fosse inato e natural, não passa de uma invenção
teológica.
Mesmo o instinto é fruto de um devir e, conseqüentemente, de uma
crueldade. Se o tigre que devora o antílope não exerce nenhuma crueldade, o
trabalho interno que fez dele um tigre, que forjou seu corpo, suas garras, sua
pelagem, foi uma crueldade, pois foi o resultado forçado de suas relações com
o resto do vivo, de sua potência de afeto. A forma de seu corpo, como a forma
e a cor de uma fl or se modelaram em função dos afetos. Inclusive para uma
planta, a vida é reação aos afetos. Uma fl or tem que conter, dirigir, dar forma
ao fl uxo germinativo, existir na sua pequena singularidade de rosa ou de cacto
que está em conexão com a imensidade das formas e das forças do vivo. A
crueldade da vida é que é tão cruel para o cavalo fi car preso na sua forma de
cavalo – malgrado o fl uxo germinativo que o leve a ultrapassar esta forma –
quanto de se transformar em cachorro, rosa ou andorinha. Mesmo se os animais
parecem-nos bem instalados nas suas formas, certamente eles também, como
nós, são trabalhados pela potência do devir e da metamorfose do vivo. E a
responsabilidade do homem é carregar esta consciência cruel, para a criação, as
plantas e os animais.
Eis um poema de Federico Garcia Lorca (1954, p.97) que diz isso de
maneira, mas sensível e evidente:


Que esforço!
Que esforço do cavalo para ser cachorro!
Que esforço do cachorro para ser andorinha!
Que esforço da andorinha para ser abelha!
Que esforço da abelha para ser cavalo!
E o cavalo,
Que fl echa aguda ele extrai da rosa!
Que rosa cinza ele levanta de seu focinho!
E a rosa,
Que rebanho de luz e de gritos
Ela liga ao suco vivo de seu talho!
E o açúcar, que pequenos punhais ele sonha acordado!
E os minúsculos punhais,
Que lua sem estábulo! Que nus,
Pele eterna e rubor, eles procuram!
E entre os toldos,
Que Serafi m de chama eu procuro, e sou !1
[…]


Esse poema é intitulado “Morte”, contudo, poderia ser Vida ou Devir,
pois é necessário que uma forma morra para que uma força de vida exista. A
crueldade, como diz ainda Artaud, é que a vida é sempre a morte de alguém.
Para começar, a morte de si mesmo, de cada forma em nós que quer morrer
para torna-se outro. (“Morre e advém”, repetia Nietzsche, após Goethe). Lorca,
também, atribui à potencia terrível do devir o nome de “esforço” com o qual
Artaud defi nia a crueldade.
O instinto, sendo um acorde natural de uma forma animal com a vida, é
então um mito. Mas, toda cultura, toda sociedade é fundada também no mito
de uma ordem e de um acorde natural do seu funcionamento com o resto do
mundo. Assim, a crueldade social, gestão que se aproveita da crueldade da vida,
pode exercitar-se em toda liberdade e permanecer desapercebida. Quais são
estas práticas do corpo: a excisão, as escarifi cações, as tatuagens, as elongações
do pescoço das mulheres-girafas, na África, a redução dos pés das Japonesas,
a moda que existe desde o começo da humanidade, seja nos hábitos corporais
dos Índios da Amazônia, seja na roupa dos nobres da corte de Luís XIV, ou nos
costumes dos camponeses colombianos? Quais são? senão um trabalho cruel
do corpo para dar uma forma codifi cada, para que a ordem social e simbólica
pudesse infl uir no caos da vida fulminante. O mesmo acontece com as leis da
família, as práticas do bode expiatório, as guerras e os sacrifícios. Tudo isso
tem uma justifi cação lógica, social, quase natural. A razão ocidental, ela mesma,
exerce uma crueldade escondida por trás de sua aparente frieza: o trabalho do
conceito, da dialética, da moral, são sistemas de crueldade. Diariamente tem que
cortar, retalhar na matéria viva. Sem falar da crueldade experimental da ciência,
da biologia, da medicina. Mas a fi losofi a, à força de negar sua própria crueldade
intelectual, sua incrível potência castradora, torna-se incapaz de pensar a
crueldade inerente à vida e ao homem.
Se os pré-socráticos, como Empédocles ou Heráclito, tinham uma visão
da criação do mundo em perpétua guerra, a fi losofi a depois de Parmênides, se
fundou na idéia do Ser, da ordem dos cosmos, do Bem e da felicidade, ambos
exatamente defi nidos por Platão como “doçura”. Assim, Aristóteles (1988, p.98)
em A Ética a Nicômaco, afi rma que a crueldade física, como por exemplo: comer
carne crua ou praticar o canibalismo, e a crueldade mental: sentir prazer ao ver
sofrer o outro, tudo isso é explicado seja pela bestialidade, seja pela doença, ou
seja, pela loucura. Aristóteles pode então concluir que a crueldade, como todo
excesso, está “fora dos limites do vício”, isto é, da moral. Estranha à essência do
homem, a crueldade não é sequer uma forma de perversidade propriamente dita.
Foi necessário esperar alguns pensadores como Maquiavel ou Montaigne, que,
no seu ensaio consagrado à crueldade, escreve de maneira bonita: “Temo que a
natureza tenha colocado no homem algum instinto voltado para a inumanidade.”
(MONTAIGNE, 1969, p.102) Por outro lado, foi preciso esperar Schopenhauer
inverter a metafísica ocidental, fazendo do Ser, não o Bem e o Bom, mas o Mal
absoluto da Vontade. Ele foi o primeiro a dar uma explicação metafísica da
crueldade. Finalmente, e sobretudo, foi necessário esperar Nietzsche.
Ora, Nietzsche e Artaud foram os grandes pensadores modernos do teatro.
Por que, então, «O Teatro da Crueldade»? Qual é a ligação essencial entre o
teatro e a crueldade? Nietzsche lembrou a origem dionisíaca da tragédia. Artaud
voltou também à tragédia, às formas antigas e aos rituais do teatro, passando
menos pelos gregos, mas sobretudo pelo teatro de Sêneca e pelas formas
orientais, como as danças de Bali. Nietzsche (1968), num fragmento datado da
época em que redigia O Nascimento da tragédia, afi rmava que a palavra “drama”
não signifi cava “ação”, mas “acontecimento”. Da mesma maneira, Artaud
(1974, p.147), no fi nal da vida defi ne a potência reveladora, e mesmo geradora
do teatro, com esta fórmula: “O teatro é na realidade a gênese da criação.” O
teatro reencontra um tempo originário, isto é, o tempo sagrado quando as coisas
se separam violentamente e se reúnem na crueldade. Ele está em um ponto de
junção entre a violência pura da vida (a peste) e a potência dos princípios que
cortam, retalham, ordenam o caos do vivo.
É por isso que o teatro, segundo Artaud, se faz contra o espetáculo. Não
se trata de encenar a psicologia das personagens, de representar uma história,
de copiar a realidade cotidiana. Tudo isso constitui imagens congeladas da
energia vital da crueldade. O verdadeiro teatro, pelo contrário, cria o vazio da
representação. Foi bem depois dele ter abandonado o palco que Artaud deu
suas defi nições mais fortes ao teatro. Assim, por exemplo, essas duas defi nições
aparentemente contrárias, porém complementares.


Primeira: “O teatro é a guilhotina, a forca, as trincheiras, o forno crematório
ou o hospital psiquiátrico. A crueldade: os corpos massacrados.”(ARTAUD,
1976b, p.11).


Segunda: “O teatro não é esta parada cênica onde um mito se desenvolve
virtual e simbolicamente, mas esse cadinho de fogo e carne verdadeira onde,
anatomicamente, por pisoteamento de ossos, de membros e de sílabas, os corpos
se refazem e o ato mítico de fazer um corpo se apresenta fi sicamente e de modo
natural.” (ARTAUD, 1948, p.15).


A primeira citação diz que o teatro toca ao mesmo tempo a essência
violenta da vida e a crueldade da história. Artaud acreditou tanto no valor
dos mitos, como denunciou os próprios mitos que levaram à perdição tanto
a Europa como a si mesmo. Isso é verdade, sobretudo, no fi m de sua vida,
depois da segunda guerra mundial e do seu encarceramento no asilo de Rodez.
Sem os mitos modernos, sem a força encantadora que o espírito dos mitos
exerce ainda sobre nossos cérebros de pretensos descrentes, a crueldade dos
campos de concentração ou dos asilos de alienados não teria sido possível.
Os mitos, as religiões, os fascismos, em vez da consciência pura da crueldade,
instalam a vontade de um deus ou de um chefe. É como se o chefe fosse
o mestre da divisão e da reunião das coisas. É preciso se submeter a ele, e
ele nos dará a harmonia e acabará com o dilaceramento do vivo. Mas, para
isso, tantos sacrifícios foram realizados em nome do Bem coletivo, tantos
massacres históricos foram necessários à defesa do Estado, tantas crueldades
rituais foram concretizadas para preservar a unidade religiosa da massa. Hoje,
esta crueldade política e social está hipocritamente escondida atrás da horrível
guerra econômica do capitalismo mundial. O extermínio da África pela fome
ou pela A.I.D.S., a miséria organizada dos três quartos da humanidade, a morte
de milhares de Iraquianos sob bombardeios “cirúrgicos”, a humilhação das
mulheres a partir de preceitos religiosos arcaicos que ressurgem no seio do
paradigma comunitário europeu contemporâneo – tudo isso seria o preço do
progresso e se justifi caria pelas leis econômicas? Mas não! É sempre o exercício
de uma crueldade. No presente contexto, voltado contra a própria vida.
Não há crueldade sem consciência… mas, hoje, repete Artaud, a
consciência está doente. Ela se deixa voluntariamente enfeitiçar pelo
espírito da massa: ideais coletivos, fantasias universais mantidas pela mídia,
espectacularização do real, agressividade onipresente como barreira ao limite
de nosso desejo e de nosso gozo. O que Artaud chama “consciência da
massa” se nutre de ressentimento e de ódio, mas ela foge à responsabilidade
como a todo contato com a crueldade do real, submetendo-se às potências
transcendentes de morte.
Eis o paradoxo da consciência doente: ela prefere se refugiar na morte
a enfrentar a crueldade de viver. A história do século XX mostrou bem a
necessidade histórica do pensamento de Artaud. Fascismo, Stalinismo, Maoísmo,
Maccartismo, ditadura no Brasil e na América Latina em geral, nos anos sessenta,
Bushismo agora, são os efeitos do desejo das massas que confi am a uma vontade
superior a necessidade individual de experimentar a crueldade. É sempre o
sistema religioso que volta com seu cortejo de holocaustos e sacrifícios. Daí esta
última defi nição da crueldade em Para acabar com o julgamento de deus: “A crueldade
é extirpar pelo sangue e até o sangue deus, o acaso bestial da animalidade
inconsciente humana, por toda a parte onde ele se encontra” (ARTAUD, 1974,
p.102).
A animalidade inconsciente do homem é o espírito do mito, o espírito da
massa que se aglutina por trás de um ideal para exercitar seu ressentimento em
toda impunidade e expulsar para o exterior a origem da crueldade da vida. O
fundamento desses sistemas de crueldade mórbida, como mostrou Freud (1991)
no seu texto sobre a Psicologia das massas, é a identifi cação dos indivíduos da
massa, que identifi cam também seu eu ideal e o projetam num chefe, numa idéia
ou em qualquer traço unifi cador.
Isso nos faz voltar precisamente ao teatro e a sua função política. Foi
possível acreditar que a grande descoberta de Artaud tinha sido a encenação, e
ainda mais, a encenação espetacular. Enquanto, de fato, sua grande descoberta
é o ator. Temos que distingui-lo imediatamente do artista que se esforça para
interpretar um papel, para tornar-se o centro de todas as identifi cações, que
coloca a sua personalidade a serviço de sua performance.


O ator, pelo contrário, apaga-se. É a encarnação de um não-lugar, ele faz
existir o vazio no palco. Entre seu próprio corpo que ele abandona e o papel
do qual foge, o puro ator do teatro da crueldade é o centro crítico do mundo
do espetáculo e das identifi cações. A potência crítica do ator é sua fraqueza
humorística para macaquear os papéis e os duplos. Estamos longe da crítica
de idéias do teatro de Sartre ou de Camus, mas também do distanciamento de
Brecht.
Se olharmos os exemplos maiores que Artaud nos oferece, da dança de Bali
aos Marx Brothers ou aos últimos textos como “Alienar o ator”, constatamos
que todo o trabalho, o tripalium do ator, não é um jogo de papéis, mas um
dilaceramento do corpo anatômico em previsão da passagem para um estado do
corpo mais intenso, ou mais real, para algo que se poderia chamar singularidades
de acontecimentos que evitam o espírito identifi catório da massa ou do público.
O trabalho crítico do ator, segundo Artaud, poderia definir-se como uma técnica
negativa. Essa técnica foi exatamente retomada por Grotowski ou Tadeusz
Kantor (1977, p.113) que, no seu livro O teatro dela morte, indica para o ator o
objetivo seguinte:


Reorientar a ação dramática,
Dirigi-la abaixo do movimento normal da vida
Através do relaxamento
Dos laços biológicos,
Psicológicos, semânticos
Pela perda da energia e da expressão,
Por um “resfriamento” da temperatura
Indo
Até o vazio –
Eis o processo de desilusão
E a única chance
De reencontrar o real.


O teatro então é crítico. Denuncia e mostra a crueldade social em que
vivemos hipocritamente. Mas ele também tem um papel criador e, por assim
dizer, humanizante, na medida em que a crueldade é própria ao homem, e que o
ser homem supõe ultrapassar as formas estabelecidas do humano. O teatro, ao
contrário do “acaso bestial da animalidade inconsciente humana”, consiste na
superação desumana dos limites da consciência e do corpo do homem. Podemos
ainda defi ni-lo como a necessidade de viver a crueldade para refazer o humano
contra os automatismos inconscientes e fora de uma crueldade que suportamos
como um rebanho caminhando para o matadouro. Em um dos seus últimos
textos, Artaud (1986, p.277) escreve:
O teatro nunca foi feito para descrever o homem e o que ele fez, mas para constituir
um ser de homem que pudesse nos permitir avançar na estrada do viver sem supurar
nem feder.
O homem moderno supura e fede porque sua anatomia é ruim e o sexo, em relação ao
cérebro, mal colocado na quadratura dos 2 pés.
E o teatro é esse boneco desengonçado, música de tronco pelas farpas metálicas
de arame farpado, que nos mantém em estado de guerra contra o homem que nos
prendia.”
Muito bem, mas como fazer? Que técnica Artaud propõe? Nenhuma.
Aqueles que quiserem aplicar as teorias dos sopros do Teatro e seu Duplo,
inspiradas pela Cabala, aqueles que quiseram quebrar a barreira entre o teatro
e a sala ou a vida, como o Living Theatre, cultivaram um misticismo contra
o qual Artaud se rebelou no fi m da vida. Muitas vezes, eles privilegiaram
o happening ou a transe, algo que Artaud rejeitou explicitamente. Os que
estiveram mais próximos de sua concepção, Kantor, Grotowski, Peter Brook,
Carmelo Bene, não aplicaram suas técnicas ou idéias de encenação, que por
sinal, nem existem. Todavia, eles encontraram em Artaud esta energia cruel da
sublimação física do corpo, que é o teatro fora da representação. É pela força
de suas visões poéticas, de suas imprecações, de seu trabalho sobre a língua,
de sua experimentação verbal e mental da carne que ele deu e dá ainda um
sopro aos descobridores desse teatro da crueldade com o qual Artaud sonhou
sem realizá-lo. Esta potência genésica de Artaud sobre os atores modernos se
encontra talvez melhor resumida pelo dançarino buto Ko Murobushi (1985,
p.23) no poema que segue.
Quando danço, eu sinto a mão direita de Antonin Artaud
Agarrar
Uma de minhas costelas fl utuantes, perto de meu coração, em vez de segurar sua taça
Esta mão de esqueleto vivo (existe o risco de confundi-la
com a mão de uma múmia) se estende a partir de uma fotografi a de Artaud debilitado
Diretamente para minhas vísceras e balança.
Ela é tão pesada quanto flutuante como uma válvula
Quando eu danço, ela é uma força que leva
Minha dança a ser um divertimento cruel. Não é um método
Mesmo se é um contágio que ele mesmo quer.




ARISTOTELIS. Ethica Nicomachea. Edited by L. Bywater. Oxford: Oxford
University Press, 1988.
ARTAUD, A. Le théâtre et l’anatomie. Paris: Gallimard, 1986. (Oeuvres complètes,
22).
______. Messages révolutionnaires. Paris: Gallimard, 1971-1980. (Oeuvres
complètes, 8).
______. Position de la chair. Paris: Gallimard, 1976a. (Oeuvres complètes, 1).
______. Préambule. In: OEuvres complètes. Paris: Gallimard, 1976b. t.1. p.15-30.
______. Pour en finir avec le jugement de dieu. Paris: Gallimard, 1974. (Oeuvres
complètes, 13).
______. Le théâtre et son double. Paris: Gallimard, 1971. (Oeuvres complètes, 4).
______. Le théâtre et la science. L’Arbalète, Lyon, n.13, p.6-31, 1948.
FREUD, S. Psychologie collective et analyse du moi. Traduction de l’allemand
par Jean Laplanche. Paris: PUF, 1991. p.1-83. (Oeuvres complètes, 16).
GARCIA LORCA, F. Mort. In: ______. Le Poète à New-York. Paris: Gallimard,
1954. p.97.
KANTOR, T. Le Théâtre de la Mort. Traduit par Roberto Mallet. Lausanne: Ed.
L’Age d’Homme, 1977.
74 Lettres Françaises
Camille Dumoulie
KOMUROBUSHI. Quand je danse, je sens la main droite d’Antonin Artaud. Scènes:
revue de l’Espace Kiron, Paris, n.1, p.23, mars 1985.
MONTAIGNE, M. Essais. Paris: Garnier-Flammarion, 1969.
NIETZSCHE, F. Humain, trop humain: un livre pour esprits libres. Fragments
posthumes 1876-1878. Texte et variantes etablis par G. Colli et M. Montinari.
Traduits de l’allemand par Robert Rovini. Paris: Gallimard, 1968. t.1. (Oeuvres
philosophiques complètes de Nietzsche, 3).

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